Pequenos produtores americanos estão quase extintos

Pequenos produtores americanos estão quase extintos

04 de dezembro, 2019

Adaptado do artigo escrito por ALANA SEMUELS, de Wisconsin (EUA)

 

Por quase dois séculos, a família Rieckmann criou vacas de leite em um pedaço de terra enlameado no meio de Wisconsin (estado americano muito tradicional na produção de leite). Mary e John Rieckmann, que agora administram a fazenda e suas 45 vacas, já viram todos os tipos de altos e baixos: secas, inundações, excesso de oferta de leite que provocaram queda nos preços. Mas eles nunca viram uma crise como a atual.

Os Rieckmann têm dívidas de cerca de U$ 300.000,00 e os credores estão cobrando a conta da ração e o pagamento de um trator usado que compraram para manter a fazenda funcionando. Porém, ganhar dinheiro está mais difícil do que nunca, quanto mais pagar a dívida, diz Mary Rieckmann, na casa da fazenda onde ela mora com o marido, John, e dois dos sete filhos.

Os Rieckmann recebem cerca de U$ 16 por cada 100 libras de leite que vendem (cerca de R$ 1,49 por litro), uma queda de 40% em relação a seis anos atrás. Há semanas em que todo a renda do leite vai para o pagamento mensal do financiamento da casa de U$ 2.100,00 e dois credores já penhoram a fazenda. "O que você faz quando está contra a parede e simplesmente não sabe para onde ir?", lamenta ela. Mary, 79, e John, 80, esperavam deixar a propriedade para seus dois filhos, de 55 e 50 anos, que ainda vivem com eles e administram a fazenda. Agora eles estão menos focados no legado do que em passar a semana.

Pelo menos no imaginário americano, a fazenda familiar ainda existe como nos cartões de natal: uma extensão pitoresca e modestamente próspera que preenche o espaço entre os centros urbanos onde a maioria vive. Mas, está em declínio há gerações e atualmente as pequenas propriedades sofrem de todos os lados: guerra comercial, condições climáticas severas, preços de commodities globalizados, polarização política e agricultura corporativa - definida por tecnologia e eficiência de escala.

É a pior crise em décadas. De julho de 2018 a junho de 2019, os pedidos de falência agrícola aumentaram 12% no Meio-Oeste dos EUA e 50% no noroeste. Dezenas de milhares simplesmente pararam de cultivar, sabendo que a reorganização por falência não os salvará. O país perdeu mais de 100.000 fazendas entre 2011 e 2018; 12.000 delas somente entre 2017 e 2018.

A dívida agrícola americana, de 416 bilhões de dólares, está em um nível histórico. Mais da metade de todos os produtores perdeu dinheiro em todos os anos desde 2013 e perdeu mais de 1.644 dólares este ano. As inadimplências de empréstimos agrícolas estão aumentando. 

Suicídios em comunidades rurais estão acontecendo com frequência alarmante. Os fazendeiros não são os únicos trabalhadores da economia americana a serem deslocados pela tecnologia, mas – quando perdem o emprego – também são expulsos de suas casas e da terra que está em sua família há gerações. "Isso te atinge com tanta força quando você sente que perdeu o legado que seus bisavós começaram", disse Randy Roecker, um produtor de leite de Wisconsin que lutou contra a depressão e cujo vizinho Leon Statz cometeu suicídio no ano passado depois que problemas financeiros o forçarem a vender suas 50 vacas leiteiras. Roecker estima que está perdendo U$ 30.000,00 por mês.

Até grandes empresas estão enfrentando desafios sem precedentes. A Dean Foods, uma produtora global de laticínios que compra leite de milhares de pequenos produtores, entrou em falência na terça-feira – 12 de novembro – e está buscando uma venda, uma medida que poderia dificultar ainda mais para os produtores que procuram empresas para vender seu leite.

A duração e a gravidade da crise atual sugerem uma possibilidade alarmante e antes impensável – que a produção independente não seja mais um meio de subsistência viável nos EUA. As pequenas fazendas – definidas como aquelas com faturamento bruto de menos de U$ 350.000,00 por ano – representaram apenas um quarto da produção de alimentos em 2017, caindo de quase metade em 1991. Na pecuária de leite, as pequenas fazendas representaram apenas 10% da produção. 

"As fazendas e ranchos familiares estão enfrentando uma grande extinção", diz Al Davis, produtor de gado de Nebraska e ex-senador estadual. "Se perdermos esse estilo de vida rural, realmente perderemos uma grande parte do que tornou este país ótimo”.

Após anos de boom, no início do século XXI, os preços de commodities como milho, soja, leite e carne começaram a cair em 2013. A razão desses preços mais baixos são as forças gêmeas que pesam em grande parte da economia americana: tecnologia e globalização. A tecnologia tornou as fazendas mais eficientes do que nunca. Mas, as economias de escala significam que a maioria dos benefícios foi acumulada pelos produtores corporativos, que construíram grandes propriedades à medida que os pequenos produtores se afogavam. Mesmo com quatro milhões de fazendas desaparecendo nos Estados Unidos entre 1948 e 2015, a produção agrícola total mais que dobrou. A globalização trouxe mais produtores para os mercados agrícolas internacionais, inundando o mercado com soja, milho, carne e leite, e – com o aumento da oferta – preços mais baixos. A produção global de alimentos aumentou 30% na última década, segundo John Newton, economista-chefe da American Farm Bureau. 

Depois que os EUA aplicaram tarifas sobre produtos chineses, incluindo aço e alumínio – no ano passado – a China retaliou com tarifas de 25% sobre as importações agrícolas dos EUA. A China voltou-se para outros países, como o Brasil, para substituir a soja e o milho americanos. "Este foi um mercado que levou anos para se desenvolver", diz Barb Kalbach, produtora de quarta geração de milho e soja em Iowa, referindo-se à China. Sua soja colhida está em um armazém de grãos enquanto ela espera para ver se a China vai comprar, apesar das tarifas.

As exportações agrícolas entre janeiro e agosto deste ano caíram 5% (ou U$ 5,6 bilhões) em relação ao mesmo período do ano passado. O governo Trump disponibilizou U$ 16 bilhões em ajuda aos produtores afetados pela guerra comercial, apesar de pequenos produtores reclamarem que a maior parte do dinheiro foi destinada aos grandes com grandes perdas de safras. Cerca de 40% dos U$ 88 bilhões esperados para este ano em renda agrícola serão dados em forma de ajuda e seguros federais, de acordo com a American Farm Bureau Federation.

"Seja grande ou saia daqui", disse Earl Butz, secretário de Agricultura de Nixon, de maneira infame aos agricultores na década de 1970. É um sentimento que Sonny Perdue, secretário de agricultura do presidente Trump, ecoou recentemente durante a World Dairy Expo, em Wisconsin: "Na América, os grandes crescem e os pequenos saem". O número de fazendas com mais de 2.000 acres quase dobrou entre 1987 e 2012, segundo dados do USDA, enquanto o número de propriedade com 200 a 999 acres caiu 44% nesse período.

Muitos pequenos produtores americanos estão vendendo seus produtos por menos do que o custo para produzi-los. Os preços estão tão baixos que fazendeiros como os Rieckmann estão tentando descobrir outras maneiras de conseguir dinheiro para manter suas fazendas funcionando. Mas, como muitas outras áreas rurais do país, sua cidade de Fremont não tem uma economia movimentada. Tanto a Kmart quanto outra loja de departamentos, Shopko, fecharam este ano no condado de Waupaca, custando o emprego de dezenas de trabalhadores.

Chuva forte e neve fora de estação também afetaram muitos produtores do Meio-Oeste americano. Este ano “foi um dos anos de eventos climáticos mais significativos", disse John Newton, economista-chefe da American Farm Bureau Federation. Partes de Iowa, Nebraska e Minnesota sofreram inundações recordes, com o rio Mississippi recebendo 200% mais chuva e neve do que o normal. Chuva e neve incomuns impediram os agricultores de plantar 19 milhões de acres este ano, o máximo desde que o USDA começou a medir em 2007. No ano passado, por outro lado, o clima impediu o plantio em apenas 2 milhões de acres.

Mike Rosmann, psicólogo e agricultor de Iowa que trabalha com fazendeiros em dificuldades, diz que – na primavera – recebia sete ligações por semana de produtores que estavam com problemas de saúde mental devido às finanças da fazenda. Um fazendeiro ligou para Rosmann para dizer que estava pensando em suicídio – as inundações destruíram o milho que ele havia colhido e colocado em um armazém, mas nem o seguro agrícola nem o seguro contra inundações o reenbolsaram, pois ele já havia realizado a colheita. John Hanson, que administra uma linha direta de assistência aos produtores rurais em Nebraska, diz que este ano recebeu ligações de fazendeiros desesperados à meia-noite, incluindo um sentado em sua cozinha com uma espingarda carregada e as luzes apagadas.

"É muito, muito sombrio para nós e muitos fazendeiros que conheço estão no mesmo barco", disse Brenda Cochran, uma pequena produtora de leite na Pensilvânia que afirma saber de nove suicídios relacionados aos baixos preços do leite nos últimos dois anos. “Seria um milagre nos sustentarmos por cinco anos.” A Farm Aid opera uma linha direta para agricultores que enfrentam crises e as chamadas aumentaram 109% no ano passado em relação ao ano anterior, diz Alicia Harvie, Diretora de Serviços e Advocacia para Fazendeiros da entidade. A mais nova lei agrícola reserva U$ 50 milhões em cinco anos para apoio comportamental à saúde de agricultores em dificuldades.

A população rural dos EUA está encolhendo há décadas e a Grande Recessão acelerou essa contração à medida que os empregos nas áreas rurais desapareciam e as pessoas se mudavam para as cidades em busca de trabalho. É aí que estão os empregos. Entre 2008 e 2017, as áreas metropolitanas de cidades com pelo menos 50.000 pessoas representaram 99% de todo o crescimento de empregos e população americanos, de acordo com dados analisados ​​por David Swenson, economista da Iowa State University. No Meio-Oeste, 81% dos municípios rurais viram declínio da população entre 2008 e 2017, e no Nordeste, 85% dos municípios rurais encolheram nesse período.

Kalbach – a agricultora de Iowa – diz que, onde mora, cinco famílias diferentes cultivavam milho, feijão, feno e criavam gado e porcos. Nos últimos 15 anos, as outras quatro famílias desistiram e se mudaram. Como os fazendeiros venderam para operações maiores, as empresas locais que dependiam de pequenos produtores também ficaram estagnadas. O local onde os Kalbachs compram produtos químicos fica agora a 75 milhas de distância. A única farmácia de seu município foi fechada no início deste ano. Não há mais um local onde ela possa consertar o equipamento agrícola. "Todos os milhares de produtores que deixaram a terra – todos os negócios foram com eles", diz ela.

O mesmo acontece com as instituições que formam uma comunidade. Cerca de 4.400 escolas em distritos rurais fecharam entre 2011 e 2015, de acordo com o Centro Nacional de Estatísticas da Educação. Os distritos suburbanos, por outro lado, adicionaram aproximadamente 4.000 escolas no mesmo período. Somente em Wisconsin, o antigo distrito escolar no norte do estado fechou três escolas primárias este ano e 44 escolas foram fechadas desde 2018.

"Eu costumava ter muitos vizinhos, agora quase não tenho vizinhos", diz George Naylor, produtor de milho e soja em Iowa que está tentando fazer a transição para a agricultura orgânica para se manter vivo.

Brenda Cochran está preocupada com o futuro de sua comunidade rural na Pensilvânia, à medida que mais agricultores desistem. Duas fazendas vizinhas estão com os leilões programados para breve. A empresa de refrigeração para laticínios, onde ela compra equipamentos, está à beira do colapso. Os jovens, vendo o desespero econômico ao seu redor, saem o mais rápido possível. "Eu vejo isso como uma remoção por atacado – ou extermínio – da nossa classe rural", diz ela.

Os americanos estão se concentrando cada vez mais em algumas áreas metropolitanas – até 2040, 70% dos americanos viverão em 15 estados. As regiões que cercam as fazendas familiares dos EUA podem se tornar as próximas cidades fantasmas do país. "Temos que pensar sobre como realmente queremos que a América rural se pareça", diz Jim Goodman, presidente da Coalizão Nacional de Fazendas Familiares. “Queremos que seja formada por pequenas cidades abandonadas e produtores que não conseguem ganhar a vida?”

As grandes fazendas podem se contentar com preços mais baixos para os produtos, aumentando sua escala; alguns centavos por galão de leite somam muito se você tiver milhares de vacas. Mas, os pequenos fazendeiros alertam que um país sem produtores locais pode criar problemas na cadeia de suprimento de alimentos. 

“Há uma forte razão para se estar profundamente preocupado quando, em vez de ter 10 fazendas leiteiras de médio porte produzindo renda cujos proprietários a gastam na cidade, você a substitui por uma grande fazenda de propriedade de um conjunto de investidores cujos lucros vão para Nova York e Chicago”, disse Peter Carstensen, professor de direito emérito da faculdade de direito da Universidade de Wisconsin.

Os fazendeiros dizem que a melhor solução é a política do governo que reprime a consolidação dos supermercados e das fábricas de processamento de alimentos que compram dos produtores. No início deste ano, um congressista de Wisconsin apresentou uma legislação para impor uma moratória às fusões de grandes redes do varejo de alimentos. Os fazendeiros estão defendendo uma melhor aplicação antitruste em todo o país; em outubro, pecuaristas realizaram um ‘rally’ para instar o Congresso a proteger os produtores familiares do poder de monopólio. Em Vermont, os produtores de leite entraram com uma ação alegando que um conglomerado de compradores de leite conspirava para estabelecer preços baixos do leite.

Uma categoria de pequenos produtores está prosperando no mercado atual: fazendas orgânicas que podem cobrar um prêmio por seus produtos e que podem vendê-los localmente. Havia mais de 14.000 fazendeiros orgânicos certificados em 2016, um aumento de 58% em relação a 2011. Mas mudar para orgânico é caro e para produtores como os Rieckmanns que já estão profundamente endividados, não é uma opção. "Às vezes sinto", diz Mary Rieckmann, "como se estivessem tentando nos tirar do mapa".

 

Adaptado e traduzido por Marcelo de Paula Xavier, M.Sc.

Original disponível em: https://time.com/5736789/small-american-farmers-debt-crisis-extinction/

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