Não vale um bifinho

Não vale um bifinho

03 de novembro, 2024

Escrito por Paulo do Carmo Martins*

 

Em 1974, quando o Brasil completava apenas dois anos de imagem colorida pela TV, quando esses aparelhos de TV eram tão raros, que as prefeituras os instalavam em praças públicas...pois, há exatamente meio século, no intervalo do Jornal Nacional, pela primeira vez foi exibida a propaganda que entrou para a história: Danoninho, vale por um bifinho...

Era um tempo de Brasil diferente de hoje, que comprava leite todo dia em padarias ou do carroceiro. Um Brasil em que as marcas de lácteos eram regionais e os supermercados ofereciam poucas opções de derivados: doce de leite, leite em pó, creme de leite e leite condensado. O queijo, vinha direto da fazenda para nossa mesa, sem intermediário. 

Alex Periscinoto se imortalizou por popularizar produtos com propagandas históricas, como as da Kibon, calças Levi’s e carro Gol. Esse primeiro gênio da propaganda nacional foi desafiado a popularizar um produto totalmente desconhecido do brasileiro: o iogurte. Como convencer uma mãe de alta renda a criar o hábito de oferecer regularmente ao seu filho um derivado lácteo industrializado? Pois, há exatamente 50 anos surgia o slogan: Danoninho vale por um bifinho!

E o hábito se enraizou tanto que, vinte e um anos depois, o símbolo de sucesso do Plano Real foi a explosão de consumo do iogurte pela população de baixa renda. Sim! O pobre, ao adquirir capacidade de compra, buscou o iogurte. Naquele ano tivemos recorde de importação de leite: US$ 600 millões. A Danone criou no brasileiro a vontade e o hábito de consumir toda essa vertente de consumo de iogurte, petit suisse, bebidas lácteas, enfim, leites com sabor.

A Danone mentiu para as mães brasileiras. Danoninho não vale um bifinho! Quem disse isso foi o Conar, um órgão privado que faz a autorregulamentação das propagandas. A Danone teve de tirar a campanha do ar. Mas, quinze anos depois, a Danone retomou o tema, levando à comparação de forma indireta, trazendo crianças cantando as diversas propriedades nutricionais do Danoninho; no ritmo da valsa para piano, conhecida no Brasil como "O Bife". A Danone lançou mão de uma lembrança mentirosa do passado para ganhar mercado. 

A Danone é uma empresa centenária, que está completando 105 anos este ano. Ela chegou no Brasil em 1970 e soube se posicionar bem no imaginário do consumidor brasileiro. É vista como uma empresa de produtos inovadores, nutritivos, de qualidade. É uma empresa que foca um consumidor com renda elevada. No episódio da propaganda mentirosa, em dois momentos, a Danone mostrou que vale mentir para atingir o seu consumidor. 

Sou estudioso do setor lácteo brasileiro desde 1982. E me chama a atenção o comportamento da Danone no Brasil. Não é uma empresa que busca interagir com os produtores e suas entidades, com os órgãos de pesquisa e extensão. É uma empresa ausente dos esforços que o setor faz para se organizar. Nestas quatro décadas, raras foram suas iniciativas para desenvolver produtores, contribuir para a evolução da cadeia produtiva.

A Danone está focada em inovação industrial e no consumidor. Mas, no Brasil, não estimula a formação de um ecossistema de inovação nacional. Ao que parece, o Brasil é local para vender produtos, fazer receita. Sua competência pode ser sentida com o Activia, por exemplo. É um produto campeão de vendas, foi importante para o desempenho da empresa durante a pandemia. E, no Brasil, neste segmento, praticamente não tem concorrente com outros similares, mesmo entre os grandes laticínios.

Na década de noventa, quando foi criada a Organização Mundial do Comércio, a União Europeia criou dificuldades para a comercialização de produtos agrícolas vindos do Brasil, mas liberou a entrada da soja sem tarifas restritivas. O motivo foi tornar competitiva a produção de carne, leite, ovos, suínos e aves, via soja brasileira. Mas, com o passar dos anos, foi crescendo no meio urbano europeu a imagem da destruição da floresta amazônica, pelo plantio de soja e o Brasil não tomou o cuidado necessário com esta tendência, que se instalou. 

O episódio da soja, ocorrido no final do mês de outubro, é uma atitude imoral da Danone. Uma atitude oportunista. Um Diretor mundial afirmou que a Empresa deixou de comprar o grão do Brasil, para comprar de países que estão numa região importadora? Porque não disse comprar dos Estados Unidos ou da Argentina, também os melhores colocados no ranking de produção?

A Danone não está entre os maiores laticínios em compra de leite no Brasil. É a décima-quarta. E, dos US$ 27 bilhões que a empresa faturou no mundo no ano passado, somente cerca de US$ 1 bilhão veio do Brasil, ou apenas 4%. Portanto, a Danone não é importante para o Brasil, nem o Brasil é importante para a Danone.

Se a Danone deixar de comprar soja do Brasil, nada nos afeta em termos de quantidade. Mas, afeta a imagem do Brasil. E, a empresa desrespeita seu consumidor, em tempos de ESG. O que a Danone fez é greenwashing, uma palavra nova, que significa mentir, buscando mostrar que está preocupada com o meio ambiente. 

No momento que escrevo, a Danone mundial ainda não demitiu o seu Diretor. Logo, está avalizando sua fala. Que coisa feia, Danone. Assim, não vale nem um bifinho!

 

 

*Paulo do Carmo Martins - Professor da Faculldade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de Juiz de Fora / MG.

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