Trilogia do Leite Brasileiro: 1 - O Começo de Tudo

Trilogia do Leite Brasileiro: 1 - O Começo de Tudo

01 de setembro, 2022

Artigo publicado originalmente na Revista Balde Branco

Escrito por Paulo do Carmo Martins*

 

Em 1972, saímos de uma produção de cerca de 7 bilhões de litros de leite/ano, para cerca de 36 bilhões/ano, atualmente. São cinco vezes mais, enquanto a população dobrou, saindo de 100 milhões para 211 milhões, aumentando significativamente a disponibilidade de leite para cada brasileiro.

Mas, o crescimento da produção não retrata toda a mudança estrutural vivida. Para evidenciá-la, vamos construir a linha do tempo do setor e apresentá-la em três artigos, a partir deste. Sim, será a Trilogia do Leite Brasileiro.

Em 1972, os melhores rebanhos apresentavam produtividade média de cinco litros por vaca/dia. Eram animais sem raça definida, criados extensivamente em pastos não cultivados. O único cuidado com a alimentação verde era roçar o pasto uma vez por ano. E a ração era o farelo de trigo importado, comprado a preços subsidiados. Era um Brasil que não conhecia a soja e produzia pouco milho. As propriedades eram multifuncionais, produziam para subsistência.

A ordenha era manual e a produção não enchia um latão de 30 litros. Levado para a beira da estrada, este latão ali permanecia ao sol ou chuva, até ser recolhido pelo caminhão não refrigerado. Nessa época, o poder de barganha do caminhoneiro com produtor e com indústria era muito grande, pois ele definia as rotas de captação.

Nos anos setenta, grande produtor era aquele que tinha muita terra e muitas cabeças de gado. Portanto, a visão patrimonialista era a marca da atividade. A renda com a venda de animais tinha muita relevância para o produtor.  Minas Gerais e São Paulo eram os principais estados produtores. O sul mantinha autossuficiência e o Centro-Oeste, com pouca população, produzia mais que consumia e o excedente era destinado às regiões Nordeste e Norte. Com pouca produção por propriedade, leite era escasso e caro.

Os laticínios eram pequenos, exploravam mercados restritos, com marcas regionais. Havia forte presença de cooperativas centrais, congregando dezenas de singulares, principalmente nas regiões Sudeste e Sul. Itambé, Paulista, CCGL e CCPL eram suas marcas fortes. A variedade de derivados disponíveis para o consumidor era restrita: leite em pó, leite pasteurizado em sacos de um litro, leite condensado, creme de leite e queijos, como muçarela, prato e minas. O canal de comercialização único eram as padarias. Mas, o forte da comercialização era o mercado informal. O leiteiro, em sua carroça de burro, fazia delivery porta a porta.

O crescimento econômico exponencial desta década, em que o PIB chegou a crescer 14% num único ano, deixou um legado: o crescimento substancial do consumo. A resposta imediata foram as importações e o Brasil se tornou o terceiro maior importador de leite do mundo.

Mas, o quadro de bonança da economia terminou na década seguinte. Os anos oitenta trouxeram dois grandes desafios para o setor: estagflação e urbanização rápida. A inflação galopante, expressão da época, se instalou num ambiente de recessão. Portanto, estagflação – o pior dos mundos. Foi a primeira grande crise econômica desde o início da industrialização brasileira, que fez aquele período ser conhecido como “a década perdida”.

Leite e derivados são muito afetados por desemprego e inflação elevados, que deprimem o poder de compra dos assalariados. Para complicar ainda mais o setor, nesta época o preço do leite era tabelado sem critérios pelo Governo, que usou deste instrumento para combater a inflação, ao segurar os reajustes ao produtor. Vale ressaltar que o leite tinha um considerável peso no cálculo do índice do Custo de Vida.

O segundo desafio foi a urbanização rápida, com o crescimento das capitais dos Estados. Isso resultou num maior custo de leite e derivados na mesa do consumidor e maiores perdas na comercialização. O Brasil não tinha uma logística de frios. Com distâncias crescentes do local de produção para o consumo, o quadro se agravou, numa época em que o Brasil era importador de petróleo caro e com escassez de dólares no Banco Central.

Neste ambiente de preços controlados e custos elevados, os produtores reduziram a oferta e ficou evidenciado que era preciso criar um critério transparente para reajuste de preços do leite ao produtor. Coube ao professor Sebastião Teixeira Gomes e a mim propormos uma planilha de custos, que se tornou oficial pelo Governo, em 1987. Com 25 anos, era minha a responsabilidade dizer quanto deveria ser o reajuste de preços.

O legado deste período? A Planilha de Custos de Produção de Leite da Embrapa foi uma disruptura institucional. A partir dela os produtores passaram a reivindicar políticas públicas. Já a urbanização evidenciou a necessidade do aumento de produtividade em toda a cadeia, visando eficiência e competitividade.

Neste artigo abordamos as décadas 70 e 80. O começo das transformações estruturais. No próximo, avançaremos no tempo. Aguardo você aqui.

 

*Paulo do Carmo Martins é Economista, com Mestrado e Doutorado em Economia Aplicada. Pesquisador da Embrapa, foi Chefe-Geral da Embrapa Gado de Leite e Secretário Executivo da Câmara Setorial do Leite e Derivados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2004 a 2008).

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