Trilogia do Leite Brasileiro: 2 - Nasce Uma Nova Era
02 de setembro, 2022
Artigo publicado originalmente na Revista Balde Branco
Escrito por Paulo do Carmo Martins*
Este é o segundo artigo da Trilogia do Leite Brasileiro.
No primeiro, descrevi o começo da organização do setor, ocorrida nas décadas de 70 e 80, que quintuplicou a produção nacional em apenas meio século, tornando o Brasil o quarto país maior produtor de leite do mundo. No presente texto, vamos analisar a década de 90, que marca o fim do milênio e o surgimento de uma Nova Era.
Em 1990, duas decisões governamentais tomadas de chofre promoveram a ruptura do setor lácteo nacional: a desregulamentação estatal e o término da distribuição gratuita de leite. A primeira significou o fim do tabelamento de preços e o crescimento do Mercosul no mercado nacional de lácteos. A segunda extinguiu a garantia de compra oficial de leite para programas sociais. Fim da tutela e do mercado cativo, com menos Governo presente, o setor foi levado a se reinventar.
Os anos seguintes foram dolorosos. Produtor e indústria tiveram de trocar o verbo “reivindicar” para o verbo “negociar”. Acostumados a reivindicar do Governo, tiveram de aprender a negociar preços entre si e com o varejo, um exercício difícil e até hoje com aprendizagem em evolução.
A retirada do manto estatal mostrou que haviam imensas ineficiências na produção, no transporte, no processamento e na distribuição. E, com o mercado aberto a importações facilitadas, só havia um caminho: redesenhar o setor, visando menores custos e melhor qualidade, da fazenda até à mesa do consumidor. É quando o setor descobre a importância de incorporar tecnologias, tanto de produção, quanto de gestão.
Nas propriedades, a pressão passa a ser por aumentar a produção e a produtividade a um só tempo. Para isso, as soluções tecnológicas adaptadas se juntam às genuinamente brasileiras, criadas pela Embrapa, Universidades e Institutos de Pesquisa. Desta forma, aparecem os primeiros ganhos de melhoramento genético animal e surge o primeiro capim clonado, de nome Pioneiro, criado pela Embrapa, que vai mudar a forma de trabalhar a pastagem no mundo tropical.
Mas, se a pesquisa apresentava novidades tecnológicas, ficou evidente a dificuldade em disseminá-las, pois faltava serviço de assistência técnica, com a extinção da Embrater (empresa federal) e ganhou velocidade o enfraquecimento da atuação da Emater nos Estados. Foi quando as cooperativas e os grandes laticínios passaram a disponibilizar este serviço.
Também surgiram várias iniciativas municipais, principalmente no Paraná e Minas Gerais. Eu fui secretário municipal em Juiz de Fora e criamos o Proleite, um programa que contou com a mentoria do saudoso Professor Vidal (por isso me considero seu discípulo, sem ter sido seu aluno) e Embrapa Gado de Leite. O Proleite foi premiado pelas Fundações Ford e Getúlio Vargas, foi referência para o Sebrae na criação do Educampo e foi executado de 1995 a 2010.
A pressão sobre os produtores por adoção de tecnologia gerou resultados. Os produtores começaram a adubar a pastagem, a controlar a produção do rebanho, a usar inseminação artificial, a buscar a redução do intervalo entre partos, a falar em profissionalização. “Tirador de leite” passou a ser expressão pejorativa. Pela primeira vez, a produção cresceu em função da produtividade (Censo Agrocuário do IBGE, 1996).
Eis que, na metade daquela década, surge a principal transformação disruptiva. A granelização trouxe cinco mega impactos: aumentou a produção e produtividade, reduziu custos, excluiu laticínios e produtores avessos à modernização, profissionalizou a captação e melhorou a qualidade do leite.
O tanque de expansão tornou viável a segunda ordenha, aumentando a produção e a produtividade. A ida do caminhão refrigerado a cada dois dias na propriedade fez o custo de transporte cair, e creio, é a principal explicação da queda abrupta do preço do leite para o consumidor, naquela década. Com mais leite e menos km rodado, melhorou a densidade na coleta, com reflexos no custo por litro transportado. E melhorou a qualidade do leite, pelo resfriamento, com o uso de caminhões isotérmicos no transporte até à usina de processamento.
Mas, o principal impacto da granelização foi na organização da indústria, já que o tabelamento de preços tinha criado uma acomodação generalizada. Não importava o custo de processamento, pois o consumidor pagaria a ineficiência de uma planta pequena, velha e mal localizada.
Com a granelização, os laticínios foram desafiados a facilitar a aquisição de tanques pelos produtores. Aqueles que agiram desta forma conquistaram espaços. Isso marcou a ascensão das multinacionais no setor, em detrimento das cooperativas e dos laticínios familiares, que iniciaram perda de importância.
Antes da granelização, o que se tinha era um ajuntamento de produção de baixa qualidade e quantidade. Produção obtida sob a tutela do Estado, escassa, cara e de pouca variedade para um consumidor refém. A granelização fez surgir a lógica de cadeia produtiva.
Ah! Que pena! O espaço deste artigo acabou. Mas as mudanças disruptivas da década, não! Então, continuo com você aqui no mês que vem!
*Paulo do Carmo Martins é Economista, com Mestrado e Doutorado em Economia Aplicada. Pesquisador da Embrapa, foi Chefe-Geral da Embrapa Gado de Leite e Secretário Executivo da Câmara Setorial do Leite e Derivados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2004 a 2008).