Como o leite subsidiado da UE está afundando os produtores da África

Como o leite subsidiado da UE está afundando os produtores da África

16 de fevereiro, 2019

Escrito por Emmet Livingstone, traduzido por Marcelo de Paula Xavier.

 

O leite europeu está sendo despejado na África, com efeitos desastrosos para os pastores e agricultores locais. As multinacionais bilionários do setor de laticínios estão explorando os níveis baixíssimos de preço do leite na Europa para expandirem agressivamente na África Ocidental. Ao longo de cinco anos, elas quase triplicaram suas exportações para a região, enviando leite em pó produzido por agricultores europeus altamente subsidiados para serem transformados em leite líquido para a classe média em expansão da região.

Essa corrida do leite está aumentando as acusações de que os países pobres pagam o preço das políticas agrícolas da União Europeia elaboradas em Bruxelas. Durante anos, a UE tem estado na mira de críticos como o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan (ele próprio ganense), por suas enormes doações financeiras aos agricultores. Eles argumentam que a generosidade da Europa em relação a seus agricultores pune os países pobres e está em desacordo com os objetivos declarados da UE de promover o desenvolvimento na África, reduzindo os fluxos migratórios e combatendo a radicalização.

A pressão europeia sobre os produtores de leite africanos se intensificou em 2015, quando a UE retirou suas cotas de leite. Coincidindo com um embargo russo à comida europeia, deixou o continente inundado de leite. Com os preços em níveis historicamente baixos, as empresas de laticínios da UE precisavam desesperadamente de novos mercados para se livrar de seu excesso.

A África Ocidental, com sua crescente população e demanda por laticínios, era um destino óbvio. Entre 2011 e 2016, as exportações de leite em pó da UE para a África Ocidental saltaram de 12,9 mil toneladas para 36,7 mil toneladas - a maior parte indo para plantas no Senegal, Costa do Marfim, Gana e Nigéria, que reexportam o produto para seus países vizinhos.

Enquanto players globais como Danone, Arla e FrieslandCampina instalam plantas de reconstituição para processar leite importado da Europa, os agricultores da África Ocidental estão lutando para competir. Embora a produção local nunca tenha atendido totalmente à demanda, especialistas alertam que o recente dilúvio de leite pode sufocar a indústria local, deixando a região dependente.

"As pessoas que vivem do leite estão lutando", afirmou Adama Ibrahim Diallo, presidente do Sindicato dos Produtores e Mini-processadores de Leite de Burkina Faso. Ele disse que os fazendeiros de sua região estão gradualmente desistindo, explicando que seu laticínio recebe 200 litros de leite por dia, mas que já chegou a receber 300.

Diallo alertou que o problema está agravando a situação de segurança no Sahel1. "Os filhos dos pastores se tornam jihadistas - não por convicção, mas porque não há empregos."

"O problema ... está ligado à superprodução", disse ele. "A estratégia das multinacionais é se instatar na África Ocidental para afundar o leite".

Bacar Diaw, da Associação de Laticínios do Senegal (FENAFILS) concorda. "Quando grandes quantidades de leite em pó da UE são enviadas para a África Ocidental, nossos produtores locais de leite precisam carregar o fardo nos ombros", disse ele.

Tais acusações são delicadas para Bruxelas, que há anos incentiva seus agricultores a uma competição mais aberta. O bloco eliminou, em 2015, os subsídios à exportação em grande medida, por exemplo. E em fevereiro, o Comissário Europeu para a Agricultura, Phil Hogan, anunciou uma força tarefa para a África rural, destinada a aconselhar os governos sobre políticas agrícolas e ajudar as empresas da UE a investir com responsabilidade.

Em resposta a um discurso que Diallo deu em Bruxelas em fevereiro, Hogan ressaltou que o Burkina Faso poderia usar tarifas para reduzir as importações se quisesse. "Eu encorajaria o Sr. Diallo a discutir isto com seu governo", disse ele. "No entanto, eu também entendo que os governos podem optar por manter uma baixa tarifa de importação por razões de segurança alimentar. Mas essa é a sua decisão soberana".

Um alto funcionário da Comissão Europeia disse à agência POLITICO2 que menos de 10 por cento das exportações de leite em pó desnatado da UE vão para a África Subsaariana e que outras empresas se aproximariam se as empresas européias não o fizessem.

Mais leite, mais mercados

As empresas europeias do setor de laticínios dizem que precisam vender leite fora da Europa para sobreviver.

Embora a África Ocidental compreenda alguns dos países mais pobres do mundo, também contém algumas das economias que mais crescem. O Banco Mundial estima que, este ano, as economias de Gana e da Costa do Marfim cresçam 8,3% e 7,2%, respectivamente, por exemplo.

O analista de comércio agrícola Paul Goodison disse que os laticínios da UE se aventuraram na África Ocidental em antecipação a uma queda nos preços pós-quota, na esperança de capturar esse mercado em crescimento.

A Arla Foods - uma cooperativa de laticínios dinamarquesa com receita anual de €10 bilhões - estabeleceu uma fábrica na Costa do Marfim projetada para lidar com seu leite em pó em 2013, por exemplo. Em 2015, abriu mais instalações na Nigéria e no Senegal. A Danone fez uma entrada ainda mais forte em 2013, quando comprou 49% das ações da Fan Milk, com fábricas em seis países da África Ocidental. A empresa francesa assumiu a propriedade em 2016.

Outros, como a Nestlé e a FrieslandCampina, uma cooperativa holandesa, estão na região há décadas. No entanto, ambos também investiram mais antes do fim das cotas. A FrieslandCampina adicionou uma fábrica de pó na Costa do Marfim em 2014, enquanto a Nestlé inaugurou uma nova fábrica em Gana no mesmo ano.

Preços baixíssimos, impulsionados pela superprodução da Europa, também estimularam as exportações, que cresceram 38% em 2017 em relação ao ano anterior. O custo do leite em pó desnatado caiu de cerca de €3,30 por quilo, no início de 2014, para cerca de €1,70 na mesma época ede2016, por exemplo, antes de cair para €1,30 em março.

Os principais compradores estão em países com déficit em laticínios, como a China; no entanto, o fluxo de saída está refletindo em mercados menores, como a África Ocidental também. "Isso continua crescendo", disse o analista Paul Goodison, referindo-se às importações de leite para a região. "Isso realmente dificulta os produtores locais".

A Arla disse a investidores em 2014 que precisa "manter uma base estável na Europa" e "transferir leite para mercados com alta demanda para gerar crescimento lucrativo". Acrescentou que pretende aumentar as suas receitas sub-saarianas de €87 milhões em 2014, para €240 milhões em 2017.

O porta-voz da Arla, Theis Brøgger, disse que o potencial de consumo impulsionou a expansão da empresa, e não os preços baixos. "Os preços na Europa são voláteis e não baseamos nossa estratégia de longo prazo na evolução dos preços de curto prazo", disse ele.

Jan-Willem ter Avest, da FrieslandCampinad, não respondeu se os baixos preços do leite levaram à expansão da empresa na África, mas disse que os preços do petróleo, a "situação econômica" e as regras de importação foram levados em conta.

A Danone não respondeu aos pedidos de comentário.

Beber

Kevin Bellamy, um estrategista mundial de produtos lácteos do Rabobank da Holanda, concordou que os baixos preços do leite em pó permitiram que as empresas européias expandissem para a África Ocidental. No entanto, ele disse que o clima da região não é adequado para a produção de leite industrial em pé de igualdade com a Europa e que aquela provavelmente continuará sendo um importador líquido.

É a onipresença do leite barato da Europa que faz com que comprar o suprimento local não seja econômico.

O leite produzido domesticamente no Senegal, por exemplo, custa cerca de US$ 1 por litro, de acordo com um estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) publicado no ano passado. O leite produzido a partir de SMP3 importado reconstituído custa metade.

A FAO aconselhou a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental a investir em infra-estrutura agrícola - o que sugere ser uma boa aposta, já que cerca de 65% da população do bloco é rural e possui gado. Também pediu que o bloco da África Ocidental proteja os agricultores locais da "concorrência desleal".

Por exemplo, a FAO disse que a tarifa de lácteos externos de 5% da região é "fraca em comparação com os subsídios para os produtores dos países ocidentais". Acrescentou que a competitividade do leite europeu na região se dá "graças, em grande medida, às políticas de subsídios agrícolas".

Bruxelas insiste que está ajudando a região com suas questões centrais, como infra-estrutura deficiente ou fornecimento desigual de energia, ao mesmo tempo em que instrui as empresas a investir com responsabilidade.

Insiste que os subsídios não são o problema.

"As exportações de leite em pó da UE para a África estão respondendo à demanda africana. Elas são feitas por operadores privados, sem nenhuma restituição de exportação paga pela União", disse um porta-voz da Comissão, acrescentando que os subsídios aos agricultores europeus são uma recompensam por eles cuidarem do sistema rural e garantirem a segurança alimentar, mas não poderiam “ser definifos como suporte de preço para qualquer produto em particular”.

Todos os laticínios da UE na África Ocidental dizem que trabalham com parceiros locais. A Danone financia uma fábrica de leite no Senegal para produtores locais de leite, por exemplo, enquanto a FrieslandCampina e a Arla estão trabalhando com produtores de leite nigerianos.

Alguns moradores, no entanto, definem esses esquemas como fachada.

"É uma maneira de parecer bem na União Européia", disse Diallo, presidente do Sindicato dos Produtores de Leite de Burkina Faso. "Eles vieram para o negócio - eles não vieram para ajudar os produtores".

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Notas do tradutor:

1 - O Sahel é uma faixa de 500 a 700 km de largura, em média, e 5 400 km de extensão, entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana do Sudão, ao sul; e entre o oceano Atlântico, a oeste, e ao mar Vermelho, a leste.

2 - POLITICO é uma agência de notícias sobre políticas, lançada na Europa em abril de 2015.

3 - SMP é a sigla de Skim Milk Powder; ou seja Leite em Pó Desnatado

 

Disponível em: https://www.politico.eu/article/eus-milk-scramble-for-africa/

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