Crise da pecuária de leite acelerou a concentração no setor
02 de fevereiro, 2024
De acordo com o pesquisador da Embrapa Paulo do Carmo Martins, desde 2013, a produção leiteira no Brasil não aumentou, mas o leite que antes era produzido por pequenos e médios pecuaristas (que saíram da atividade), passou para grandes produtores, em um movimento de concentração da produção.
“Isso aumentou a velocidade porque você investe e precisa de receita, e a receita não chegou. Essa turma saiu e o grande, por outro lado, percebeu muito claramente que aumentar a produção reduz o custo unitário de produção. De 2009 a 2022, os 100 maiores produtores de leite no país aumentaram em 1,5 milhão de litros de leite por dia em sua oferta. Mas, quando se vê a produção brasileira, ela não cresceu.
Com custos de produção elevados nos últimos anos – principalmente relacionados à nutrição dos animais – e rentabilidade mais baixa para o produtor, as margens ficaram esmagadas.
Natália Grigol, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), reforça que, apesar da falta de estatísticas atualizadas sobre a saída de produtores de leite da atividade, “quando se vê os números da produção de leite a gente vê uma tendência de concentração do tipo de produtores”.
“A volatilidade dos preços do leite e dos insumos atinge as categorias de produtores de leite de jeitos diferentes. Os dados mostram que existe um padrão desta exclusão [de produtores] e os que foram mais penalizados pelos preços dos insumos e do leite são aqueles que não atingem uma grande escala que seja interessante para negociação com os laticínios. O produtor pequeno, aquele de subsistência, às vezes acaba ficando por mais tempo no mercado. O produtor médio é o mais vulnerável, que não consegue escala significativa para diminuir o custo unitário. Ele não consegue o tempo de projeção de retorno do investimento que ele fez para ganhar em escala e acaba sendo penalizado. O que tem escala, que tem uma condição melhor de negociação, que tem um custo unitário de produção menor é aquele que vai se concentrar”, afirma.
Jonadan Ma – presidente da comissão técnica de leite do Sistema Faemg/Senar e vice-presidente da comissão de leite da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), explica que quem produz até 200 litros de leite por dia no Brasil (considerados ‘pequenos’), são 93% dos estabelecimentos no país...e 49% do leite produzido no país vem destas fazendas.
“Os grandes produtores vão assumindo o lugar do médio produtor, o pequeno produtor até 200 litros/dia, esse que sobrevive na subsistência, ele continua na atividade. O problema são os que não estão conseguindo superar essa crise de custo de produção, que pagam empregado, produzem entre 500 a 1000 litros por dia, que é o médio produtor. Os que estão acima dessa escala, eles vão conseguindo se manter”, esclarece Ma.
De acordo com sua análise, há dez anos consecutivos a produção leiteira no país está estagnada. “Cresceu até 2012, e de 2013 a 2023 ‘estacionou’ a produção de leite. O fechamento de 2023 deve manter ou ter leve declínio na produção. É triste para um país do tamanho do Brasil que produz 34,1 bilhões. O grande problema hoje não é apenas a importação, é a falta de incentivo ao produtor para que ele consiga começar a produzir mais leite”.
Jonadan Ma detalha que este fenômeno, que foi acelerado no Brasil devido à crise no setor leiteiro, não é algo inédito e nem recente, já que atinge outros países há algum tempo.
O especialista traz dados da Embrapa Gado de Leite e do Sistema Faemg/Senar, apontando que, em 2000 havia 1,605 milhão de propriedades produtoras de leite no Brasil, número que caiu para 1,130 milhão e em 2021. “O Brasil perdeu 1/3 de seus produtores (500 mil), em 20 anos.” E este movimento vai continuar, talvez até mais acelerado agora.
“Não temos dados oficiais, mas existe de fato gente saindo. Em 2000, os Estados Unidos tinham 83 mil fazendas produtoras de leite, número que caiu para 30 mil fazendas em 2021. Na Alemanha, tinha em 139 mil propriedades leiteiras em 2000, e em 2021 eram 55 mil. Isso foi sendo uma concentração também. A Argentina, reduziu de 17 mil fazendas leiteiras em 2000 para 10 mil fazendas em 2021”, disse.
Setor industrial também passa por um movimento de concentração
A pesquisadora do Cepea, Natália Grigol, aponta que não apenas o setor produtivo vem passando por este movimento de concentração mais acelerado, mas o agroindustrial também.
“Vemos não só os produtores, mas na indústria de laticínios observamos que está havendo concentração. Em nenhum momento essa cadeia industrial deixou de se concentrar, seja um comprando o outro laticínio, seja fusão, aquisição de massa falida, comprando empresas transnacionais. Os efeitos desta crise afetam a cadeia de ponta a ponta. Quando aumentou o custo de produção como foi em 2022, aumentou para todos, e aí é difícil a competição. Você substitui atores que não têm mais como investir”, pontua Grigol.
2023: Um ano para ser esquecido
“A cadeia toda sofreu demais, a partir de maio [de 2023] em diante tivemos uma escala descendente no preço pago e uma elevação recorde na importação, que desbalanceou toda a cadeia leiteira. É um ano a ser esquecido, porque levou o produtor a trabalhar no prejuízo por boa parte do ano”, afirmou Jonadan Ma.
Segundo informações do CEPEA, no acumulado de 2023, as importações chegaram a 2,25 bilhões de litros em equivalente leite, o que representa uma elevação de 68,8% em relação a 2022. O principal derivado lácteo adquirido pelo Brasil no ano passado foi o leite em pó, com expressivo avanço de 83,4% sobre o balanço de 2022. Entre os principais exportadores de leite para o Brasil figuram Argentina e Uruguai.
De acordo com o pesquisador da Embrapa Paulo do Carmo Martins, “estamos em uma fase de transição em que o problema não está no preço, e sim no custo. O preço como média está voltando para o patamar normal, mas o pequeno produtor está sofrendo. Os custos não estão voltando e a margem ficou apertada para a produtividade média do produtor brasileiro”.
Martins salienta que, no ano passado, a importação de lácteos bateu recorde, atingindo algo entre 10% e 12% do equivalente à produção nacional, sendo que o padrão brasileiro era importar em torno de 3%. “O preço médio e a produtividade média levam a um preço médio, fazendo com que boa parte dos produtos não consigam ser competitivos.
O pesquisador afirma que, se continuarmos a adotar essa política de não intervenção, o Brasil vai importar 5%”, levando-se em conta uma movimentação de alta no mercado internacional de leite. “Os preços internacionais vão subir e vai ajudar a reduzir as importações também por conta disso no Brasil. A nossa importação está muito dependente da Argentina e do Uruguai...Ainda não é possível analisar estes anúncios do governo argentino por ser um governo que está no início”.
Para Natalia Grigol, é um desafio mundial trabalhar com os custos em elevação, e a tendência global é de que a produção de leite cresça a passos mais lentos em 2024. O Brasil, segundo ela, tem uma prospecção de aumento de 1,5% este ano.
“É interessante observar como isso vai acontecer ao longo do ano, pois a gente já começa o ano com a produção em desaceleração, com margens mais espremidas, redução no número de produtores, de vacas, de investimentos, e o [fenômeno] El Niño afetando a safra de grãos e silagem. Esse primeiro semestre de 2024 deve vir com uma disponibilidade de leite menor. Vamos sentir na pele o que é uma produção desestimulada”, destaca a pesquisadora.
Grigol ainda cita que o "contexto de uma produção mais enxuta neste primeiro semestre é delicado e ainda traz a preocupação das importações. O setor tem falado muito de uma tendência de que as importações tenham diminuição em 2024, que o cenário de 2023 não irá se repetir, até porque tem uma diferença muito menor do preço interno e externo. Todos os preços da cadeia do leite estão voltando aos patamares pré-pandemia, diminuindo a distância com os preços externos. De forma geral, o que parece é que as importações são menos volumosas, mas não significa que elas vão deixar de ser expressivas”.
Medidas para mitigação das importações de lácteos
Em 1º de fevereiro, entrou em vigor o Decreto Nº 11.732 (de 18 de outubro de 2023), o qual modifica o Decreto nº 8.533/2015 para estimular a venda de leite in natura por produtores brasileiros. A medida altera a aplicação dos créditos presumidos de PIS/Pasep e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) no âmbito do Programa Mais Leite Saudável. As informações são do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.
“As empresas de laticínios ou cooperativas que comprarem leite no Brasil poderão ser beneficiadas com até 50% de créditos presumidos. Para isso, é preciso estarem cadastradas no Programa Mais Leite Saudável. Aqueles que não forem cadastrados podem ter direito a 20% do benefício fiscal”, esclarece a publicação.
Levando em conta que os principais exportadores de leite para o Brasil são Argentina e Uruguai, Geraldo Borges (presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Leite – Abraleite) pontua que “sempre houve crises e momentos de enxurradas de importação, coisa que durava cerca de 90 dias, e o produto vinha da Argentina e do Uruguai. E quando a gente viu...[o ano de] 2023 batendo recorde de importação, nos trouxe um impacto nunca antes visto, pois este tipo de crise durava pouco, e agora está longo. Um dos fatores que incentivaram isso foi a parada das importações de alguns países asiáticos para a china, e praticamente o que o Uruguai e a Argentina mandavam para a China veio pra cá, a desvalorização do peso argentino também trouxe essa competitividade ao produto argentino, e tivemos ajuda destes dois países a seus produtores, com uma série de benesses, como subsídios e isenções, podendo trabalhar no vermelho, trabalhar aquém do preço”.
“Para que essa medida, que vai entrar em fevereiro, não seja emergencial, ela foi solicitada há alguns meses e vai vigorar em fevereiro, 3 meses após a publicação. Ela perdeu o timing de ser emergencial. Mas se ela vai ser uma medida estruturante, só iremos saber a partir do momento que ela passar a vigorar. Se diminuir as importações não será só em função desta medida, o aumento do preço do leite no mercado internacional também pode ajudar a mudar o quadro”, complementou Borges
Além deste pedido, outros pleitos também estavam na pauta, segundo Jonadan Ma. Um deles eram medidas compensatórias para barrar as importações e este decreto é parte disso, “mas ainda tem muito para fazer, e principalmente fazer uma revisão, chamar a mesa o mercosul para que o leite seja tratado de forma diferenciada, assim como o etanol por exemplo com a Argentina”.
Produtores buscaram forma para diminuir a instablidade durante a crise
A crise no setor leiteiro afetou toda a cadeia, mas de formas diferentes. Sendo assim, a reação de produtores para conseguir permanecer na atividade tendo renda, também são diferentes.
Áureo Carvalho, pecuarista em Santa Rita de Caldas/MG, relata que no caso dele, o ano de 2023 foi um pouco mais estável, uma vez que ele trava contrato de farelo de soja e compra o milho de uma vez só para o ano inteiro.
“O meu custo de produção não sofre oscilação, porque a empresa para a qual eu forneço leite eu travo contrato quando é a melhor janela de compra. Compro milho em maio, junho, que é o momento da safra. O que impacta mais no custo de produção de leite é alimentação e eu faço a silagem aqui na fazenda. Quando começou a cair o preço do leite em junho, eu tinha gordura para queimar. Eu tinha R$ 1,45 de custo de produção por litro e, quando baixou mais o preço, eu ainda tinha lucro de R$ 0,58 por litro”.
Ainda assim, ele destaca que foi um ano desafiador, principalmente para quem não se planejou. “Tem vizinho com custo de 1,90 a 2,10 na região. O produtor hoje tem que se profissionalizar e tem gente que não sabe o custo real, sabe que está perdendo dinheiro, mas não faz as contas. Vi muito produtor deixando a atividade ou reduzindo consideravelmente a produção (40% a 50%), porque não estava dando conta dos custos e do preço pago pela tonelada. Foi um ano muito difícil para a pecuária leiteira”.
Se o ano de 2023 foi turbulento, Aliny Spiti, que é produtora de leite em Manoel Ribas/PR, entrou na atividade ‘no olho do furacão’. Ela é de família de produtores de leite, mas junto com o marido, iniciou a própria produção leiteira há cerca de um ano.
“Para nós foi bem desafiador. Começamos com poucos animais, financiamos toda a estrutura, a compra de animais… O que nos ajudou a permanecer foi refinanciar muita coisa e a gente ter outras fontes de renda, como o plantio de soja, gado de corte, que dá uma aliviada. Teve uns meses que foram muito complicados, quando baixou muito, comecei a fazer uns queijos para vender na cidade e agregar um pouco de valor. Até hoje eu faço, cerca de 100 unidades e doce de leite”, disse, apontando que a diversificação na propriedade foi o que ajudou a manter as contas.
Aliny conta que a produção iniciou com 10 animais produzindo 50 litros/dia, e agora são 18, com produção média diária de 250 litros de leite. “Investimento a gente não vai fazer mais. Esses animais que temos vamos deixar criar, temos estrutura para 20 animais para lactação, e a curto prazo não vamos fazer investimento”, explicou.
Fonte: Notícias Agrícolas